PL fala em “preocupação nutricionais e culturais sobre tais dietas”
Sem cardápios vegetarianos ou veganos nas escolas públicas municipais de Niterói, na Região Metropolitana do Rio. É isso o que pode ser pauta na Câmara de Vereadores, em um futuro próximo.
A justificativa de um projeto de lei — lido em plenário, no último dia 21 de maio — gira em torno de “preocupações nutricionais e culturais sobre tais dietas”. A argumentação, no entanto, não mostra dados científicos que justifiquem a restrição.
“Estamos recebendo muitas reclamações de pais que afirmam que algumas unidades estão oferecendo refeições sem proteína animal, alegando ser vegano”, disse o vereador Douglas Gomes, autor do PL, ao ENFOCO.
Há estudos amplos ao redor do planeta demonstrando benefícios da dieta vegetariana, à saúde, na prevenção das doenças crônicas não transmissíveis mais comuns no mundo, como: pressão alta, diabetes, colesterol elevado, obesidade, e alguns tipos de câncer, como é o caso da americana Academy of Nutrition and Dietetics.
A pesquisa foi citada pela médica Laura Ohana (UFRJ), especialista em Pediatria e Endocrinologia Pediátrica, em entrevista nesta reportagem. Entenda os detalhes mais abaixo.
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A proposta do vereador Douglas Gomes (PL) também tenta descartar, no âmbito escolar, quaisquer atividades curriculares ou extracurriculares sobre o tema, como por exemplo: workshops, seminários, palestras e excursões.
Na cidade do Rio, um projeto de lei similar já foi apresentado na Câmara Municipal pelo vereador Carlos Bolsonaro (PL), mas ainda não foi para frente.
Polêmica
Em Niterói, apesar de lido em plenário, o texto ainda será apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça, responsável por avaliar o aspecto constitucional, legal e jurídico. Não há previsão para ser pautado.
Além disso, antes de virar lei, o projeto precisa ser discutido, votado e aprovado por maioria na Casa Legislativa e ser sancionado pelo prefeito Axel Grael (PDT).
Similarmente a outras localidades, Niterói observa um movimento que pode levar à imposição dessas dietas sem a devida análise crítica e adaptação às necessidades específicas de crianças e adolescentes
Douglas Gomes,
vereador
Gomes conta ser essencial considerar que a adoção de uma dieta vegetariana ou vegana requer acompanhamento nutricional especializado.
“Sobretudo para o público em fase de crescimento, garantindo assim a obtenção de todos os nutrientes necessários para um desenvolvimento saudável”, enfatiza no PL.
Alimentação Consciente
A oferta de alimentação à base de vegetais gera debate em Niterói
O plano Alimentação Consciente Brasil (ACB), adotado desde 2018, em escolas municipais e creches comunitárias conveniadas de Niterói, segundo informações divulgadas em redes sociais pela prefeitura, tem um time de nutricionistas com especialização em alimentação à base de vegetais.
Para o vereador Douglas Gomes, no entanto, o projeto apresentado busca garantir que a escolha alimentar nas escolas públicas da cidade contemple a diversidade de necessidades nutricionais dos alunos.
E, ainda na visão do político, preserve a liberdade de escolha dos pais ou responsáveis, “sem a imposição de uma filosofia alimentar particular”.
Ao mesmo tempo, é fundamental que o debate sobre alimentação nas escolas se oriente por uma abordagem equilibrada e cientificamente fundamentada, sem ceder a pressões de grupos específicos ou modismos dietéticos sem comprovação de seus benefícios a longo prazo
Douglas Gomes,
vereador
Debate antigo
A oferta de alimentação à base de vegetais na Escola Municipal Francisco Portugal Neves, em Piratininga, Niterói, já levantou debate nas redes sociais, uma outra vez.
ENFOCO mostrou, em setembro de 2022, que o pai de um aluno reclamou sobre o fato, alegando insatisfação por parte do filho. “Ele volta da oficina de xadrex cheio de fome”, disparou.
Foram mais de 300 comentários divididos entre defesa e discordância. A queixa também chamou atenção sobre àquelas crianças que, porventura, não apreciam um prato sem proteína de origem animal.
Plano de alimentação
O objetivo do ACB, adotado na rede municipal de Educação, é auxiliar no combate às doenças crônicas e a obesidade infantil, conforme anunciado pela Prefeitura de Niterói, há seis anos.
No plano Alimentação Consciente, está a substituição da proteína animal por proteína vegetal uma vez por semana, no cardápio da escola.
Assim, os alunos são incentivados a aperfeiçoar o paladar e apreciar um cardápio mais saudável, rico em legumes e frutas, evitando carboidratos.
O programa é desenvolvido também em diversos países e em algumas cidades, por iniciativa do Mercy For Animals, uma organização internacional de defesa animal sem fins lucrativos que se dedica a combater a crueldade contra animais.
Olhar médico
A médica Laura Ohana (UFRJ), especialista em Pediatria e Endocrinologia Pediátrica, pontua que a alimentação vegetariana é bastante estudada pela ciência.
“Segundo grandes organizações internacionais de saúde como a americana Academy of Nutrition and Dietetics, dietas vegetarianas podem ser adotadas em todas fases da vida, como em crianças, adolescentes, gestantes, adultos, idosos e atletas. Recomenda-se que a dieta vegetariana seja planejada e balanceada, como toda dieta deve ser”, ensina.
Alimentos ricos
A especialista explica que, ao se remover ou reduzir as carnes e produtos animais do cardápio, deve-se atentar para o consumo de fontes de proteínas vegetais, sendo as principais delas um alimento muito presente na mesa do brasileiro: os feijões.
Assim como seus substitutos, como a ervilha, a lentilha, o grão de bico e até mesmo a soja. Estes alimentos são ricos em proteínas, além de fibras, ferro, zinco, e agentes antioxidantes que ajudam a promover saúde
Laura Ohana,
médica
Medidas benéficas
A médica Laura Ohana citou o Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA 2016), realizado com adolescentes, que mostrou ser inadequadamente baixo o consumo de legumes, verduras e frutas por adolescentes brasileiros.
“Ao passo que há consumo elevado de alimentos ultraprocessados, medidas que estimulam o consumo de vegetais podem ser benéficas na melhora do padrão dietético do adolescente brasileiro”, alerta.
O vegetarianismo é passível de ser adotado em todas as fases da vida, diz médica
Tem idade para ser vegetariano/vegano?
O vegetarianismo é passível de ser adotado em todas as fases da vida, inclusive na infância e adolescência, conforme enfatiza a médica vegana Laura Ohana.
“Sendo importante enfatizar que uma alimentação balanceada e adequadamente planejada deve ser implementada, com orientação de profissionais capacitados, que possam recomendar melhores escolhas alimentares”, propõe.
Vitamina B12 é recomendada para crianças vegetarianas. Além de ferro e a vitamina D
Na escola
Em se tratando de opções vegetarianas na escola, conforme a médica, a orientação da nutricionista escolar, que já atua na elaboração de todo o cardápio de forma rotineira, se faz importante para que escolhas saudáveis e balanceadas sejam implementadas.
“Também é importante lembrar que o uso da vitamina B12 é recomendado para crianças vegetarianas, assim como o ferro e a vitamina D fazem parte da recomedação rotineira de todas as crianças, sejam elas vegetarianas ou não, no início da vida”, destaca a médica Laura Ohana ao ENFOCO.
Orientação profissional
A pediatra Laura Ohana reforça que toda criança, vegetariana ou não, precisa de acompanhamento profissional para avaliação de crescimento, desenvolvimento, e orientação em relação a condutas específicas da infância, como por exemplo:
– Introdução alimentar adequada e as escolhas alimentares saudáveis;
– Prescrição dos suplementos habitualmente indicados para todas as crianças, no início da vida, como o ferro e a vitamina D.
A criança vegetariana precisará adicionalmente, do uso regular da vitamina B12, que deverá ser prescrita por profissional, assim como as escolhas alimentares também devem ser balanceadas de forma a garantir a nutrição adequada desta criança
Laura Ohana,
médica pediatra
Suplementação
Segundo a médica, além dos suplementos de uso regular que toda criança deve receber, a sociedade, através de regulamentações por leis, já garante que alimentos consumidos pela maior parte da população sejam fortificados.
“Exemplos disso são a farinha que é fortificada com ferro e acido fólico, o sal que é adicionado de iodo, dentre outras fortificações que ocorrem de rotina, mas não são obrigatórias. Estudo recente com crianças da população geral de todo o Brasil (ENANI, 2019) detectou que a deficiência de B12 é bastante frequente dentre crianças de 6 meses a 5 anos de vida, chegando a atingir quase 40% das crianças até 2 anos, no norte do país e 25% das crianças de todo Brasil, sendo mais comum que a anemia por deficiência de ferro e a deficiência de vitamina D”.
Políticas públicas
Pesquisas como estas, na visão da especialista, ajudam a perceber que novas medidas de suplementação precisam ser tomadas como políticas públicas.
“Para que mais crianças tenham acesso às vitaminas e minerais comumente deficientes na população geral e importantes para o crescimento e desenvolvimento nesta fase da vida”, enfatiza.
Combinações acessíveis
Cereais são boas fontes de proteínas
Opções de cereais, como arroz, milho, trigo, ou seus derivados como fubá e macarrão, são ótimas fontes de carboidratos e energia, que se juntam aos feijões, ervilha, lentilha, grão de bico, que são boas fontes de proteínas, para agregar em termos de nutrição.
“Essa combinação, muito presente na mesa do brasileiro e no cardápio das escolas, é de grande importância na garantia de nutrientes para que a criança vegetariana possa crescer saudável”, acrescenta a médica Laura Ohana.
Exemplos de combinações acessíveis e nutritivas, segundo a especialista, “são o bom e velho arroz com feijão ou angu com molho de lentilha ou sopa de ervilha com pão/macarrão ou macarrão com proteína texturizada de soja ou bolinho de grão de bico com aveia/quinoa”.
O limite para a criação de pratos vegetais nutricionalmente balanceados e saborosos é apenas a criatividade, conforme pontua a estudiosa.
“Existe uma enorme diversidade de pratos gostosos e nutritivos que podem ser feitos com ingredientes de origem vegetal. Essa diversidade na apresentação de alimentos vegetais aumenta, inclusive, a chance de aceitação da criança e facilita a inserção de vegetais no cardápio, algo tão necessário para a nova geração de crianças e adolescentes, que consome cada vez menos vegetais”, finaliza.